A Infância Vai ao Cinema
TEIXEIRA, I. A. de C.; LARROSA, J.; LOPES, J. de S. M. (Orgs.).São Paulo: Autêntica, 2006.
Falar ou escrever sobre cinema é muito difícil. Coloca-se, obviamente, um problema de tradução. Como traduzir com palavras o que não é feito de palavras? Quando ouvimos ou lemos coisas sobre cinema, temos habitualmente a sensação de que não passamos dos limites, das imediações, dos arredores; a sensação de que o que está eliminado de palavras, talvez por inalcançável, é precisamente o cinema. É bem possível que ali, onde não se pode dizer nada, comece o cinema; justamente ali. É bem possível que o importante em um filme seja justamente o que não se pode traduzir em palavras e, portanto, o que não se pode formular em termos de ideias. Nem palavras, nem ideias. O que não quer dizer que o cinema não nos faça falar ou não nos faça pensar.
Ninguém disse que o cinema é somente um artefato para se contar histórias. Quiçá, pudesse-se dizer que, no cinema, do que se trata é do olhar, da educação do olhar. De precisá-lo e de ajustá-lo, de ampliá-lo e de multiplicá-lo, de inquietá-lo. O cinema abre-nos os olhos, os coloca na justa distância e os põe em movimento. Algumas vezes, faz isso enfocando seu objetivo sobre as crianças. O cinema olha a infância e nos ensina a olhá-la.
No cinema estão os tempos e os gestos da infância e o silêncio da infância, esses gestos silenciosos que não são outra coisa senão eles mesmos, esses gestos que não dizem nada. Nele estão olhares sobre seus movimentos, sobre sua quietude e sobre seu dinamismo. Sobre sua submissão e sobre sua indisciplina. Sobre suas palavras e sobre seus silêncios. Sobre sua liberdade e sobre seu abandono.
Sobre sua fragilidade e sua força. Sobre sua inocência e sua perversão. Sobre sua vontade e sua fadiga, sobre seu desfalecimento. Sobre suas lutas, seus triunfos e suas derrotas. Sobre seu olhar fascinado, interrogativo, desejoso, distraído.
No cinema nos encontramos cara a cara com os rostos das crianças, com um rosto que não é somente algo que se oferece ao olhar, mas que também, e, sobretudo, olha. Por isso, esse cara a cara com o rosto enigmático da infância não se refere somente ao fato de que o cinema olha e nos ensina a olhar os gestos e os rostos das crianças, mas que o cinema se enfrenta e nos enfrenta ao que seria um olhar infantil sobre o mundo. É como se o cinema não somente olhasse as crianças, mas tratasse de aproximar-se de um olhar infantil, tentasse reproduzir, ou inventar, um olhar de criança. Às vezes o cinema dá a ver o mundo, o real, pelos olhos de uma criança.
Nada mais difícil do que olhar uma criança. Nada mais difícil do que olhar com olhos de criança. Nada mais difícil do que sustentar o olhar de uma criança. Nada mais difícil do que estar à altura desse olhar.
Nada mais difícil do que encarar esse olhar. Parece-nos que se trata de des-naturalizar o olhar, de liberar os olhos, de aprender a olhar com olhos de criança. A criança é portadora de um olhar livre, indisciplinado, quiçá inocente, quiçá selvagem; é portadora de uma foram de olhar que ainda é capaz de surpreender aos olhos. E é a criança quem ensina ao adulto a olhar as coisas como se fosse a primeira vez, sem os hábitos do olhar constituído. Um olhar que simplesmente olha. E isso, talvez, seja o que perdemos.
Filmes abordados nesta publicação:
O espírito da colméia
Cinema Paradiso
Paisagem na neblina
O passo suspenso da cegonha
A eternidade e um dia
Amarcord
Fanny e Alexander
A infância de Ivan
Onde fica a casa do meu amigo?
O tesouro do Barba Ruiva
Papai precisa casar
Ponette
Nadie sabe
A outra face
A língua das mariposas
Como nascem os anjos
Zero de conduta
O balão branco
A guerra dos botões
Encantadora de baleias
Abril despedaçado
"Aprendi que no cinema encontramos ora um outro modo de conhecer as crianças, ora a expressão do mundo da maneira como as crianças o vêem, escutam, experimentam, ora um olhar infantil que pode ajudar a compreender o mundo e a subvertê-lo" .