Disciplina - Cinema

Filmes & Educação

04/02/2014

Morre Eduardo Coutinho

O cineasta paulista Eduardo Coutinho, assassinado no último domingo, no Rio de Janeiro, a facadas, pelo próprio filho, deixa o cinema brasileiro órfão de uma de suas vozes mais essenciais. O mais irônico é que o diretor, que tinha 80 anos, dedicou praticamente toda a sua obra à escuta do que os outros – brasileiros de várias regiões, estratos sociais, crenças e credos – tinham a dizer. Tanto sobre si mesmos, narrando suas histórias, venturas e desventuras, quanto a respeito do país, que, nos filmes de Coutinho, se revelava mais infinito na complexidade e po­­li­­fonia dos depoimentos.

O diretor, que foi sepultado ontem à tarde no Cemitério São João Baptista, na capital fluminense, deixa uma obra monumental. Não é exagero colocá-lo entre os maiores documentaristas do mundo, um constante renovador do gênero não ficcional, expandindo seus horizontes e embaralhando suas fronteiras.

Eduardo Coutinho é considerado o principal documentarista brasileiro. Com cerca de 20 filmes na carreira, o diretor é autor de clássicos do cinema brasileiro, como Edifício Master (2002), Cabra Marcado para Morrer (1984) e Babilônia 2000 (2000).

Difícil, entre tantos filmes notáveis, escolher os melhores, mas qualquer apreciação da obra de Coutinho deve se iniciar por Cabra Marcado para Morrer (1964), um marco não apenas da produção documental do país, mas obra de arte indispensável para a compreensão da vida política do Brasil na segunda metade do século 20.

Premiado no Festival Internacional de Berlim em 1984, o filme trata da vida de João Pedro Teixeira, líder camponês paraibano, assassinado em 1962. A produção do filme foi interrompida em 1964, por conta da ditadura militar. Dezessete anos mais tarde, o cineasta retornou à região para recolher depoimentos dos camponeses que participaram das primeiras filmagens. Parte da história das Ligas Camponesas de Galileia e de Sapé e a vida de João Pedro são reconstituídas por meio do testemunho de sua viúva, Elizabeth Teixeira, que fala sobre sua trajetória e das dificuldades da família.

Assim, Cabra Marcado para Morrer, cuja edição restaurada em DVD Coutinho estava preparando para lançar, fala, ao mesmo tempo, de dois momentos fundamentais na história do país: o início e o fim do regime militar, devolvendo a Elizabeth a voz que lhe foi roubada no passado.

Essa busca pelo que o cidadão tem a dizer, traço que já se fazia presente nos trabalhos jornalísticos realizados por Coutinho no programa Globo Repórter durante a década de 70, se torna uma tônica dominante na filmografia do cineasta.

Escuta

Se há um traço que une e sobressai em qualquer um dos longas-metragens de Coutinho é a prática exaustiva da escuta, presente em quase todos os seus filmes. O diretor tornou-se um método de se fazer cinema. Sabia-se, de antemão, que a matéria-prima seria a pessoalidade, materializada em relatos íntimos, orquestrados pela habilidosa condução do cineasta. Isso já se iniciava na fase de pré-produção, com uma cautelosa escolha de personagens e minuciosas entrevistas realizadas antes da gravação. Mas, justamente por lidar mais com autonarrativas do que com fatos apurados, os documentários do diretor, aparentemente assemelhados, tomavam sempre rumos imprevisíveis. Alçavam voos inesperados e surpreendentes.

Santo Forte (1999), Babilônia 2000 (1999) e Edifício Master (2002), todos trabalhos excepcionais, são exemplares nesse sentido. Com esses filmes, Coutinho consagrou-se como o documentarista que sabia entrevistar como nenhum outro seus personagens, que precisavam, nas palavras do diretor, saber contar suas histórias como condição fundamental para aparecer diante da câmera. E os temas podiam ir da religião (Santo Forte) à felicidade (Edifício Master), passando pela vida operária (Peões).

Mas houve um momento, no entanto, em que Coutinho quis ousar, levando seu método às últimas consequências ao ponto de subvertê-lo. Em Jogo de Cena (2007), histórias de vida de mulheres foram colhidas da forma usual, porém essas narrativas poderiam estar saindo da boca das próprias personagens, ou de atrizes, famosas ou desconhecidas, também entrevistadas. Ao implodir as fronteiras entre ficção e realidade, Coutinho não permitiu ao público saber quem contava a própria história e quem interpretava a vida de outra mulher.

Outra busca por uma mudança de registro se deu em Moscou, no qual retrata os bastidores de uma montagem de Chékhov.

Em As Canções (2011), Cou­­tinho retornou a seu método e partiu de uma proposta mais simples, porém instigante, capaz de provocar no espectador identificação: quis saber de 18 entrevistados quais músicas brasileiras marcaram as suas vidas. O número original de personagens era bem maior, 42. O cineasta queria ter material suficiente para conseguir costurar um longa-metragem a partir dos melhores depoimentos, gravados seguindo normas rígidas. Todos foram filmados sozinhos, sentados e sem o acompanhamento de instrumentos musicais.

Investigação

O principal suspeito do crime é o filho do cineasta, Daniel, 41 anos. Ele teve a prisão preventiva decretada ontem. A mulher de Eduardo Coutinho, Maria das Dores Oliveira, segue internada em estado grave no Hospital Miguel Couto, no Rio.



Notícia retirada do site Gazeta do Povo. Todas as informações nela contidas são de responsabilidade do autor.
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